Depois que assisti ao espetáculo “Corpo Minado”, do Grupo Atiro, minha mente deu aquela acelerada incontrolável que espetáculos sinceros e bem trabalhados provocam. Assistir cinco mulheres negras e faveladas, dirigidas por uma mulher e um homem gay igualmente pretos e favelados, apresentarem um texto inusitado e divertido sobre o cotidiano das minas pretas de periferia foi energizante.
Primeiro porque eu nunca tinha visto essa configuração no “teatro carioca”, segundo porque as fontes de inspiração e as ferramentas de execução que nós usamos são outras e, quando isso está vivo e nítido, bate no corpo de forma avassaladora.

Eu sou uma artista multi-linguagens, embora o termo mais usado ultimamente seja “artista multidisciplinar”. No entanto, eu me recuso a colocar a disciplina no contexto do meu trabalho. Sabe como é, eu fecho com o bonde da indisciplina, porque são os desobedientes que mudam o mundo e sacodem as estruturas, não é mesmo?
Quando se fala de “arte preta” (esse conceito de arte é muito colonial, logo, o que nós fazemos precisa de outro nome mas tudo bem, vamos com calma) a desobediência é um fator mais que determinante. Tudo o que nós produzimos tem como base a indisciplina, já que quem define o que é arte nem nos considera capazes de produzir cultura, a não ser que eles autorizem nossa produção com algum tipo de filtro de branquitude. Como por exemplo aquelas meninas brancas que adoram fazer versões de funk em ukelele ou versão de rap acústico; ou aqueles dinossauros acadêmicos que cospem argumentos esdrúxulos para provar que música clássica é melhor que pagode e que Van Gogh é mais substancial que minhas amigas grafiteiras. Apenas fodam – se.
Se hoje eu navego pelo mundo da produção de saberes, culturas e toda essa coisa que a gente chama de arte, posso dizer com convicção que o mestre do meu barco é Amir Haddad, um velho árabe subversivo altamente diplomático que roubou meu coração e minha inocência. Em nosso primeiro encontro ele disse:
“Eu era tão viking, fazia um teatro tão branco, até que Joãozinho Trinta me chamou para dirigir a comissão de frente do desfile “Ratos e Urubus, devolvam minha fantasia”, de 1989.
Me arrumei e fui para a quadra da escola de samba, esperando o momento do ensaio começar. A bateria tocava, os passistas sambavam, todos bebiam, cantavam e gargalhavam. E eu seguia parado, esperando o momento do ensaio começar. Foi aí que o Joãozinho passou na minha frente e eu perguntei: ‘João, que horas começa o ensaio?’
Ele sorriu e disse: ‘Já começou, Amir. Aqui não ensaia, aqui se vive.’”
A nossa vivência artística se dá pela experimentação da própria vida. Quando eu digo que promovo aulas de funk e que elas são lotadas de mulheres brancas, minhas manas pretas sempre dão uma risadinha de canto de boca, já insinuando que brancas não têm ritmo, o que posso dizer com propriedade que é mentira. Essa coisa de coordenação rítmica é muito pessoal, mas essa pré-disposição que pessoas negras têm para a dança é, na verdade, uma vida inteira de experimentação e, mais do que isso, é um corpo que se sente autorizado a experimentar constantemente, enquanto mulheres brancas, principalmente de classe média, só dançam no contexto de “aula”.
Em outras palavras: Tem gente que estuda educação sexual, tem gente que trepa.
Tudo o que nós produzimos é considerado produto cultural de segunda categoria. O Carnaval carioca é a maior espetáculo do mundo e, ainda assim, na primeira crise as pessoas dizem: “Ah, é só cortar dinheiro do Carnaval!”. É quase um século de produção artística reconhecida a nível mundial que vive sob ameaça.
Era para eu escrever um texto sobre a polêmica do “Palco Favela”, do Rock in Rio, e romantização do racismo, mas nossa potência artística é tão grande que acabei desviando o assunto. Ainda bem.