O Rena

O Renascença Clube me remete a infância. Depois que eu e minha mãe voltamos de Goiânia após 5 anos morando por lá, um dos destinos preferidos dela era colar no clube quase todo final de semana. Eu, como uma criança insuportável que era, preferi muita das vezes o meu fifa 2002 no computador do que acompanhar minha mãe. Mas – sei lá – das 100 vezes que minha mãe foi no Rena naquele período, eu devo ter ido umas 15 ou 20 vezes. E isso fez total diferença na minha formação, personalidade e luta. Mas daqui a pouco eu falo sobre isso.

O Renascença Clube tem 66 anos de história. Foi fundado a partir da vontade de famílias negras da região que eram impedidas de frequentar outros clubes da cidade pelo motivo que você já sabe qual é. Desde então o Rena se tornou um dos maiores quilombos artísticos e representativos do país. Por lá passaram os maiores sambistas, os melhores bailes Blacks da década de 70, concursos de beleza negra e outras várias ações que sempre visavam o real reconhecimento da nossa cultura. A palavra da moda “empoderamento” já era praticada desde a década de 50. Como todo Clube, passou por crises internas e altos e baixos. Mas sempre se manteve ali como um verdadeiro centro de resistência.

No último domingo rolou a segunda edição do FLISAMBA (Feira Literária do Samba e Resistência Cultural) que desta vez homenageava Dona Ivone Lara e Nelson Sargento. Também haveria uma tarde de autógrafos com Lázaro Ramos que lançou o ótimo livro “Na minha pele”. Por falar em Lázaro, arrancaram o couro da nossa atual maior referência. Ele ficou das 16 às 21 autografando livros, abraçando e dando atenção a todos que enfrentaram uma grande fila para trocar duas ou três palavras com ele. A educação e simpatia foram a mesma do primeiro até o última pessoa da fila. E uma das últimas pessoas da fila foi minha mãe que esperou, desenrolou com o organizador da fila para colocar uma senhora mais velha na nossa frente e quase não conseguiu a chance de tirar uma foto e dar um beijo na testa do Lázaro. Mas como a mulher preta que é (correria + educação + desenrolo + disposição), foi até o final e conseguiu o que queria.

A emoção da minha mãe em ter alguns segundos para conversar com Lázaro, me lembrou uma cena do filme “Selma – Uma luta por igualdade” em que Martin Luther King caminha após um de seus cultos no sul dos EUA e pessoas mais velhas chegam perto dele e tentam por alguns segundos tocá-lo e receber uma simples resposta ou um simples olhar. Desculpa por essa comparação Lázaro mas essa foi a minha sensação. Minha mãe saiu da foto eufórica e fula da vida ao mesmo tempo pois eu vendo a quantidade de pessoas e o cansaço de Lázaro, tirei a foto dos dois e não entrei na foto. Ela sai dizendo que aquele momento pra ela era histórico e eu deveria estar na foto. Eu digo que brevemente eu e ele seremos amigos. Ela se acalma e diz:
– Amém meu filho!

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Antes de irmos para a fila, eu e minha mãe andamos por todo o Rena e – como sempre – ela cumprimenta incontáveis amigas e amigos, me pega pelo braço e fala:
-Já viu meu filho? Olha o Pedro aí!

Minha mãe me apresenta como se fosse um troféu para todos. Em todos os lugares, sempre foi assim. Beijo todas as tias, cumprimento todos os tios, escuto que tô cada vez maior (tô com 26 e parei de crescer desde os 17. É pq não apareço muito) e sinto o carinho e respeito que todos tem pela minha mãe. Isso me faz ter uma visão de futuro sobre os lugares que chegarei quando tiver os meus 50 e poucos anos. Quero que minha futura filha também sinta que seu pai tem o mesmo carinho e respeito que sua avó tinha quando chegava nos lugares. Isso se perpetua.

Sentamos na mesa de uma família que sempre foi amiga da minha mãe. Vejo a menina que brincava comigo quando éramos menores já com uma filha linda. Vejo os meus tios casados rindo, escutando o samba e vendo o jogo do flamengo. Mais uma vez reparo os grandes cartazes ao redor da quadra do Rena onde na direita trazem ícones femininos negros e na esquerda ícones masculinos. Todos sorrindo.

Pego minha cerveja e vou ver o samba. Fico um pouco sozinho de propósito. É engraçado reparar a minha geração se achando a inventora do tal empoderamento por intermédio das redes sociais, dos cabelos montados e dos 20k no insta. Achar que somos os verdadeiros causadores da nova posição dos negros em comerciais e da nossa maior presença nas faculdades. O Renascença foi criado a 66 anos atrás por famílias negras de classe média. A sociedade negra carioca já queria o que eu quero a 66 anos atrás. Já tinha negro médico, advogado, comerciante a 66 anos atrás. Poucos, mas já existiam. Eu deveria saber os nomes dos fundadores do Rena com a mesma facilidade que o negro americano sabe o nome de Huey Newton. A história bonita existe, o acesso que é difícil.

Depois desse momento só, minha mãe brota do meu lado e por alguns minutos ficamos contemplando a roda de samba que acontecia na nossa frente (Grupo Kebajê. Procurem). Vimos Elaine Rosa, sambista lá pelos seus 70 anos subir no palco e cantar um samba com uma coragem e entusiasmo que nos fez querer que minha vó tivesse cuidado mais da saúde para estar ali com a gente. Vimos também Zezé Motta emocionada cantando, Dona Ivone Lara e Seu Nelson Sargento recebendo suas homenagens e Ruth de Souza sendo abraçada por Lázaro, que ainda teve disposição pra curtir um pouco da roda de samba. Todos em cima do palco, sem seguranças e sendo eles. Sendo referências.

Eu não sabia mas descobri que o Rena plantou em mim sementes de mudanças que germinaram e me fazem correr pelos meus sonhos. O Rena é a personificação do meu sonho realizado.

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