Minha memória não permite que eu chegue à primeira música que tenha despertado meus sentidos para a arte que viria a ser tão importante — e necessária — na minha curta e agitada estadia neste plano. Músicas se empilham e conquistam espaços nas prateleiras da memória, ganhando, também, proporções e importância inerentes aos nossos momentos. Num desses casos, me lembro de meu pai e a nossa rotina de ver filmes que ele escolhia, acredito, para que me servissem como exemplo. Coisas de uma vida corrida. A rotina não permitia que tivéssemos muitos momentos juntos, talvez por isso eu guarde esses momentos tão vívidos na memória; talvez por isso a urgência dele em se utilizar de modelos pré-fabricados para incutir alguns conceitos que ele considerasse necessários, uma maneira expressa de me transmitir lições quando possivelmente nem ele mesmo soubesse o que era necessário para educar uma criança. A transição de século foi um período difícil para determinar limites e tangenciar metas e modelos para uma boa educação, diga-se de passagem.
Fim de 1999, num dia de férias qualquer com muito calor; o calor seco que só Campinas (SP) foi capaz de me proporcionar. Meu pai chegou com o pacote de fitas semanal que ele costumava locar. Anunciou que não precisaria sair às 16h de casa para ir pré-trabalhar, naquele dia ele só trabalharia. Logo emendou dizendo que trouxe um filme importante, que queria ver comigo e não poderia esperar muito tempo. Meus pais nunca me negaram acesso a absolutamente nada. De cultura a violência — Campinas era a cidade mais violenta do país à época segundo os jornais —, tudo sempre me foi explícito (dentro do que ambos considerassem “didático”, claro). O filme era o novo do Denzel Washington, cujo eu já sabia ser um baita ator e um dos preferidos do meu velho, que remontava a vida de um boxeador injustamente acusado de assassinato, tendo 19 anos da sua vida tomados pela lei americana; ou por seus cumpridores inveterados. E racistas.
É interessante lembrar de como as noções de estereótipo habitam nosso imaginário desde quando nem temos o mínimo de consciência sobre aquilo que fazemos. Lembro perfeitamente do começo do filme e da sensação de estranhamento causada por uma música atípica para uma história trágica, de dor e redenção. Nada de orquestra, nada de tristeza. A música tinha um certo suingue. Esquisito para ser a introdução de um drama biográfico, mas era o que era. A voz do intérprete meio raivosa, falando sem parar por cima daquela melodia que eu já havia escutado em algum disco do meu velho. Ele sempre gostou dessa linha meio country norte-americano, até modão de viola ele ouvia, aqueles sertanejos clássicos — e eu aprendi a ouvir com ele, lógico. O filme não começava, que aflição. Eram flashes do Denzel com a música de fundo. Quase dez minutos assim. Eu meio que queria avançar o filme e ao mesmo tempo estava completamente inebriado pela sensação esquisita que o som me proporcionava. Era muita música, literalmente. E eu já não fazia questão de entender a relação estranha entre a música e o filme.
O filme acabou e, como sempre, meu pai ligou o modo sermão dele. Me alertou para a anormalidade das “brincadeiras” que crianças praticam, sobre como a lei pode ser falha e por isso era importante andar limpo e perto de “bons exemplos” (seja lá o sentido que bons exemplos tinha para ele na época), e, principalmente, sobre racismo e suas diferentes manifestações. Eu não abri a boca para nada, a não ser para concordar e perguntar que música era aquela do filme, interminável e aparentemente fora de contexto. Poucos dias depois meu pai apareceu com o disco Desire, do Bob Dylan, e lá estava a música, primeira do disco. O encarte não veio traduzido, mas um amigo do velho deu uma mãozinha com a tradução. E então tudo ficou mais claro e ainda mais inacreditável. Foram semanas movido à Bob Dylan e curiosidade.

Hoje consigo reconhecer a importância — e paciência — que meu pai, no caso, teve em responder às minhas dúvidas inabaláveis e não brecar minha curiosidade. Eu passei a ter acesso a esferas de conhecimento interessadas em subverter a ordem das coisas e que fazem as conexões entre as artes que hoje me são tão valiosas, raízes do meu trabalho com literatura. Por isso fui um dos orgulhosos com o Nobel de Literatura conquistado por Dylan, inclusive. Hurricane não é um hino, um libelo pela liberdade, apenas. Composições como essas são libertadoras de verdade, capazes de suscitar questionamentos amplos, além da condição do injustiçado Rubin “Hurricane” Carter. Ninguém acredita no isolamento dos repetidos casos idênticos ao (ou piores que) de Rubin e no comportamento idôneo da justiça. Hurricane explicita verdades à prova de balas que funcionam para mim, até hoje, como um refúgio quando me deparo com a loucura do meu tempo presente. O poder de uma boa história aliada a uma boa música é revolucionário. Isso me soa tão conceitual quanto atual.
Caio Lima -Dono do blog Rede de Intrigas e editor no site RAPRJ.