Como toda família, a minha tem lá suas desavenças. Como toda família grande, então, as desavenças se multiplicam. Eu, confesso, nunca fui de dar muita bola. Conto alguns causos na mesa do bar, dou risada de outros e só me preocupo eventualmente, quando alguém pode se ferir. Sei que só muda o endereço, então não me estendo muito.
Pelo lado paterno tive, se não me engano, seis tias e um tio. Cada um com seus filhos e netos. Mesmo com a despedida daqueles que já morreram, ainda sim reunimos muita gente em grandes eventos, como o aniversário da minha avó, a matriarca. Há poucos dias ela completou 89 anos, e lá estávamos nós. Como todos os eventos, algumas lembranças, novas crianças, muita correria, música alta, cerveja pra quem é de cerveja e Coca-cola para quem é de refrigerante. Churrasco, muito churrasco, salada de macarrão, farofa e aquela mousse de maracujá clássica. Eu sei que você lembrou de um evento similar aí na sua casa também, vai. É a tônica das reuniões familiares das famílias faveladas e/ou periféricas, principalmente no Rio de Janeiro.

Após minha saída da cidade da minha família e vinda definitiva para a capital, estar presente nesses momentos é cada vez mais raro. Mas também por isso eu fico mais atento. Diferentemente do que me era “permitido” aos 16, 18 ou 20 anos, hoje eu consigo mostrar melhor quem eu sou nessas reuniões familiares, conversar mais de igual para igual com a família, ouvir por alguns minutos minha avó contar do seu passado. É realmente um sopro de felicidade, coisa que na adolescência eu achava meio cafona. Ainda bem que a gente envelhece, né?
No último domingo, dia da festa, a playlist começou com sertanejo, passou pelo samba, flertou com o pagode, ficou no gospel tempo suficiente para todo mundo chorar um pouco, rolou funk pra criançada e terminou mesmo no samba. Mais especificamente, Jorge Aragão. Eu amo Jorge Aragão. E amo pagode, samba. Muito disso floresceu no Rio, mas foi germinado lá no quintal de casa. Tenho memórias vivas de ouvir meu tio, vizinho ao lado, ouvindo todo o tipo de samba, mas principalmente muito Raça Negra, Zeca Pagodinho e, claro, seu Aragão.
Quando “Alvará” começou, se fosse há 10 anos, talvez eu fingisse que não curto. Ia pra outro cômodo, ficar quieta. Eu não gostava de chamar a atenção, e pelos meus pais serem muito religiosos, minha aproximação com elementos “seculares” sempre era motivo de burburinho. Eu evitava. Hoje em dia, não ligo. E foi embalada por essa sensação de reconexão e experimentação que eu cantei os versos juntinho com a caixa de som. A plenos pulmões, confesso, porque acho essa música espetacular. Na segunda passada, vi meu tio chorar, e chorar muito. Apontava pra mim, e chorava. De certa forma, um pouco tímido, mas não tinha como não perceber. Você vai dizer que o álcool fomenta esses choros, e eu vou concordar, mas também pontuar: ele não torna as lágrimas menos sinceras.
E no meio desse chororô, ele se aproximou de mim. Me abraçou, e surpreso exclamou: “você gosta!”. E eu expliquei, rápido, que sim. E que ele quem havia me ensinado, mesmo sem saber, a gostar. Aí lascou, o homem chorou mais ainda, chamou meu pai (e vale destacar que os dois protagonizaram, há uns anos, uma das várias desavenças que eu cito na abertura deste texto) e chorou de novo. Depois de “Alvará”, vieram outras: “Falsa Consideração”, “Coisa de Pele”, “Identidade”, “Feitio de Paixão”. Seguimos cantando.
“Eu não sei dizer o que senti” direito, mas a cada nova música de Jorge Aragão que tocava no som, eu ficava ainda mais feliz. A reconexão familiar tem sido uma batalha interna muito forte pra mim, principalmente por eu já estar na fase da vida de perceber que as pessoas vão embora. Morrem mesmo. Não quero me tornar uma adulta frustrada e lamentar “o que podia ter sido”, sabe? Então foi um momento muito importante no sentido de colocar algumas coisas no lugar.
Não sei dizer, também, se isso me mudou em alguma medida, se vai me influenciar posteriormente ou se é só uma daquelas coisinhas que eu guardo no coração com mais afeto, a partir de agora. Mas uma coisa é certa: a música e, principalmente, o samba, é a nossa história. A minha e a sua, que leu este texto e encontrou alguma similaridade com pontos da sua vida. A nossa, que é tão maltratada pelas agruras da vida mas encontra em um churrasco ao som de Jorge Aragão um motivo para suspirar de alívio. A música preta cura, e ainda que seja um processo de passos curtos, nunca para.
Que continuemos a assinar nossos alvarás de amor. “Podemos sorrir, nada mais nos impede.”