Blues e Gospel, “irmãos gêmeos” separados no nascimento

Enraizado nos cânticos de trabalho dos africanos cativos na América do Norte, o blues traduziu os sentimentos e o estado de espírito dos pretos “semi-libertos” da escravidão. Era quase que uma força motivadora para as árduas jornadas, que não condiziam com o dinheiro recebido no final de cada semana. Essas cantorias chorosas – baseadas nas notas blue (ou pentablues), muito usadas em cantigas da África Ocidental – também exerciam “um efeito sobre aqueles que cantavam, que talvez de outro modo não trabalhassem”.

Quando a temática das letras começaram a abordar assuntos de conotação sexual, desilusões amorosas e bebedeiras, o gênero passou a ser considerado (pelos cristãos) “música do diabo”. Virou a forma mundana do spiritual, fazendo contraponto com o gospel. “É apenas uma questão de saber se você está falando sobre Deus ou de uma mulher. […] então acho que o blues e o gospel são quase sinônimos na música”, disse Ray Charles à Rolling Stone em 18 de janeiro de 1973.

De fato, o santo e o profano se assemelham na base melódica, mas se divergem no conteúdo lírico. No ensaio que tem ao final do livro “Blues”, Robert Cumb observa que a cultura do sulista norte-americano era tão “primitiva e violenta que ou você era um bom sujeito que pertencia a uma religião cristã, ou era uma pessoa má” e beberrona que tocava música marginal: o blues.

W. C. Handy se autodenominou o bluesman precursor, pois foi um dos primeiros a escrever, publicar e ganhar dinheiro com as canções do primitivo (o“cru”) Delta Blues (ou country blues). 

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Acompanhadas das distorções do diddley bow – uma versão mais rústica da Corá (instrumento de corda muito usados pelos africanos ocidentais ) –, feito com um fio de metal preso entre dois pregos numa placa de madeira com uma garrafa ou lata no meio, as letras inicialmente estavam focadas em falar das perturbações cotidianas dos trabalhadores, que encontravam nelas alento e uma forma indireta de expressar o que era proibido, como criticar os donos das fazendas e os seus capatazes.

Vale ressaltar que nem todas as regiões do continente africano tem os tambores como instrumentos predominantes. As cordas também fazem parte de diversas culturas. E com a proibição de percussões durante a escravização estadunidense, elas foram ainda mais usadas para manter a ancestralidade viva.

 

O “blues é a forma mundana do spiritual e do gospel. Ou o inverso: o gospel e o spiritual são as formas religiosas do blues”.

 

ENTRADA DO BLUES NO MERCADO

A popularização do blues não aconteceu da noite para o dia. Era um movimento restrito à comunidade negra, principalmente àqueles que frequentavam bares e clubes ou tinham contato indireto com os músicos de rua. Quando Son House (ex-pastor, ex-prisioneiro e professor de Muddy Watters, Charley Patton e Robert Johnson) migrou para Nova York a procura de emprego, levou na “mala” a música dos negros caipiras para a cidade grande. Logo, a novidade gerou interesse nos empresários brancos. Assim, começaram a recrutar uma diversidade de cantores do Delta. 

Isso também influenciou na lírica, pois o sofrimento nas fazendas foi deixado de lado e os temas relacionados ao amor (ou a falta dele) foram evidenciados. Nos estúdios improvisados em pequenos hotéis, os investidores levavam os artistas para gravarem os compactos. Charles Patton e Robert Johnson — o que, segundo a lenda, fez pacto com o diabo numa encruzilhada, assim como Tommy Johnson, onde recebeu o incrível dom de dominar o violão — são alguns dos lendários artistas que conseguiram reconhecimento com esses registros totalmente “amadores”.

 

 

Membro daquele grupo de artistas que partiram aos 27 anos, Johnson gravou cerca de 29 músicas. Já Patton foi considerado o melhor tocador de blues, tanto por músicos quanto pelas pessoas para quem tocava. Por conta da migração dos trabalhadores para as metrópoles do Norte dos Estados Unidos, entre 1930 e 1950, o blues rústico do Delta (o original do Mississipi) perdeu força — e quase desapareceu. Nas cidades que criou raízes, a sonoridade submeteu-se ao ambiente.

Em Chicago e Memphis, ele entrou de vez no mercado, majoritariamente comandado por brancos, mas movimentado pelos negros. Nessa ambientação, Big Bill Bronzy e Muddy Watter tiveram que trocar seus violões acústicos pelos elétricos, e mais tarde pela guitarra. Sugar Blue comenta (na série CITIE in Blue) que a eletrificação foi necessária e mudou os parâmetros da música, porque “nas casas de shows tinham por volta de umas 60 pessoas bebendo e farreando, e não era um barzinho onde você podia tocar um violão acústico e ser ouvido”. Desse jeito, o som que saía das caixas sobressaía o ruído do público. 

 

As mulheres tiveram papel fundamental na consolidação do blues. No final dos anos 1920, Bessie Smith (a Rainha do blues), Clara Smith e Ma Rainey, três das cantoras mais famosas, gravaram ao todo 70 discos, e eram somente algumas entre dezenas de intérpretes.

 

Das boates, o blues se transferiu para os discos e chegou às salas de estar pelas ondas do rádio. Nos anos 1940, a Chess Records, do executivo judeu Leonard Chess, começou a distribuir música racial (feita por negros para os negros) na cidade de Chicago. Durante os 20 anos que esteve na ativa, a etiqueta virou um dos ícones do gênero, levando ao topo Willi Dixon, Little Walters, Sonny Boy Williamson II, John Lee Hooker, Buddy Guy, Chuck Berry e Etta James.

A Chess impulsionou e popularizou o blues de Chicago (parte dessa ascensão é apresentada no filme Cadillac Records). Já Sam Philips, que fazia parte do time de produtores de Leonard, decidiu alçar voo e abrir o próprio selo. Em 1950, a Sun Records de Memphis iniciou os trabalhos no comando de Philips. De lá saíram os primeiros registros de B.B King, aclamado o rei do blues, Jerry Lee Lewis, Billy the Kid, Howlin’ Wolf, Carl Perkins, Roy Orbison, Johnny Cash e Elvis Presley.

“Sam Philips era o cara do blues. Ele lançou muitos artistas de blues e deu a muitos artistas negros a primeira oportunidade de gravar, e muitos deles viraram grandes nomes. […] Se Sam não tivesse dado a oportunidade a eles, talvez nunca tivessem uma chance. Mas ele fez o mesmo com muitos artistas brancos, que vieram dos campos de algodão, assim como os negros. […] Ele adorava os artistas negros”, revelou o ex-engenheiro de som Roland James.

As pontes do estilo, que estruturou a grande maioria dos que vieram depois, aumentaram em Memphis sob a arquitetura da Sun. A cidade o deixou mais dançante e fez dele alicerce para o rockabilly, o rock n roll, o gospel e uma infinidade de variações. Como disse Manfred Miller (1975, p.32), “nenhuma música popular influenciou tão profundamente a produção musical, durante as últimas décadas”.

 

 

O GOSPEL

Diferente das letras do blues, o gospel mudou as mensagens e a cadência dos spirituals. Essa música evangélica se diferenciava por ter letras alegres, “enquanto os spirituals, na maioria das vezes, expressavam as profundezas do sofrimento humano”. “No spiritual e no gospel, os louvores entoados a Deus traduziam a fé num futuro melhor. Eles representavam o grito de liberdade e, mais tarde (com a abolição da escravidão), a esperança numa vida melhor, sem discriminação racial e desigualdades raciais”.

Por volta de 1930, em Chicago, o bluesman Thomas A. Dorsey, ex-pianista de Ma Rainey e Tampa Red, uniu melodias e ritmos inspirados no delta blues e jazz a temas religiosos. No início, muitas igrejas rejeitaram a nova integração de convicção religiosa e “música popular do diabo”, mas o gospel conquistou espaço nos cultos. No final do verão de 1932, após a esposa Nettie morrer durante o parto e também perder o filho recém-nascido no dia seguinte, Dorsey escreveu a clássica canção Precious Lord, Take My Hand, um dos hinos mais representativos dos evangélicos afro-americanos. Aretha Franklin a interpreta no álbum ‘Amazing Grace’ (1972).

 

 

Thomas não só reestruturou, como fez o gospel popular ao iniciar turnês pelas igrejas negras para mostrar o renascimento e a revitalização dos grupos cristãos negros e criar a National Convention of Gospel Choirs and Choruses (Convenção Nacional de Coros e Refrões Evangélicos), um festival anual de corais. 

Até então impopular aos de fora dos templos cristãos, o gospel começou a chamar atenção da indústria nos anos de 1950 e 1960. Os números de vendas não eram significativos, mas ao identificar que os artistas tinham potencial, gravadoras tentavam fisgá-los para interpretarem canções de blues e jazz. Falando sobre o início de carreira na Sun Records, Johny Cash disse à Rolling Stone (1973) que ao revelar a Philips que escrevia canções gospel, este o respondeu: “Bem, o mercado não é bom para músicas gospel. Volte quando achar que tem alguma coisa mais”.

Esse também foi o caso de Mahalia Jackson, que até chegou a estrear pela Decca com músicas seculares, mas não vingou. Dez anos depois, ela conquistou o mundo com seus álbuns gospel. Ela não queria se associar ao blues, porque o considerava triste, apesar de ter a mesma identidade sonora da musicalidade que fazia. Por outro lado, teve quem optou cantar na igreja e nos bailes.  A cantora e guitarrista Sister Rosetta Tharpe, primeira mulher a tocar guitarra elétrica na igreja, juntamente com Dinah Washington, Aretha, Delta Rhythm Boys, Little Richard e o quarteto Isley Brothers, andou entre o religioso e o secular.

Os astros Bob Dylan e Elvis Presley também fizeram projetos cristãos. Durante a carreira, ele recebeu 14 indicações ao Grammy, mas venceu somente três vezes, todas com LP’s de gospel: How Great Thou Art (1967), He Touched Me (1972) e Elvis As Recorded Live On Stage In Memphis (com a música “How Great Thou Art”).

Apesar de terem ignorado a música gospel durante as primeiras quatro décadas após a primeira guerra, as majors (gravadoras multinacionais) aderiram ao movimento na década de 1980 — porém, o retorno financeiro não favoreceu os intérpretes. Os “louvores” de Roberta Martin, Alex Bradford, Inez Andrews, Sara Jordan Powell, Sallie Martin, Archie Brownlee, James Cleveland, Albertina Walker e Clara Ward invadiram as rádios, as lojas e as casas. Com “Oh Happy Day”, Edwin Hawkins e seu coral conquistou as paradas de sucesso, vendendo mais de 2 milhões de compactos e entrando na programação das principais rádios de música pop.

 

 

 O mercado consumidor formado por jovens que buscavam referências para acompanhar os estudos musicais também cresceu substancialmente. A variedade de estilos vocais e rítmicos fortaleceu e inspirou as canções de diversos artistas: Roy Hamilton, Sam Cooke, Smokey Robinson, Stevie Wonder, Isaac Hayes, Dionne Warwick, Ray Charles e James Brown.

Ao longo do tempo, esse tipo de som  exerceu enorme influência não apenas sobre expressões idiomáticas dos pretos, mas em toda a tradição popular americana — as tendências musicais dos anos 1970 e 1980 mostram essa realidade.

Na metade dos anos 1960, um sub-gênero do gospel foi criado, sob a influência do Jesus Movement (ou Jesus People Movement), um movimento iniciado por Ted Wise e John MacDonald para contrapor a “filosofia” sexo, drogas e rock’ n’ roll, compartilhando o amor de Jesus aos não cristãos. O gospel dos primórdios perdeu força, dando lugar a Christian Contemporary Music (CCM). O gospel brasileiro é um dos embriões dessa  CCM, mas nada tem haver com o gospel originário do negro spiritual e do blues.

 

REFERÊNCIAS

  • BERENDT, Joachim-Ernst. História do Jazz. São Paulo: Abril S/A Cultural e Industrial, 1975.
  • _________________________.; HUESMANN, Günther. O Livro do Jazz: De Nova Orleans ao século XXI. Tradução: Rainer Patriota, Daniel Oliveira Pucciarelli. — 1. Ed. — São Paulo: Perspectiva: Edições Sesc São Paulo, 2014.
  • BLUES nas cidades. Direção: Rob Davidson. Canadá: Blue Ant International, 2014. 1 DVD (60 min). Título original: CITIE in Blue.
  • COLLIER, James Lincoln. Louis Armstrong. Tradução Ibanez de Carvalho Filho. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1983, p. 65–102.
  • ERLICH, Lilian. Jazz: das raízes ao rock. São Paulo: Cultrix, 1972.
  • CRUMB, R. Blues. Tradução: Daniel Galera. 2. Ed. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2010.
  • WENNER, Jann S.; LEVY Joe. Rolling Stone: As melhores entrevistas da revista Rolling Stone. Tradução: Emanuel Mendes Rodrigues. 1ª ed. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008, p. 77 — 103.

RECOMENDAÇÕES

DOC | Aretha Franklin – Amazing Grace. Direção: Alan Elliott, Sydney Pollack

Filme | Respect: a história de aretha franklin. Direção: Liesl Tommy

Filme | Mahalia. Direção: Kenny Leon

DOC | Summer Soul. Direção: Questlove

DOC | Sister Rosetta Tharpe: The Godmother of Rock and Roll. Direção: Mick Csak.

DOC | BLUES nas cidades. Direção: Rob Davidson.

DOC | A História do Blues: Uma Luta Contra A Opreção. Direção: Jon Brewer.

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