Desde muito nova eu fui atraída pelas belezas da desobediência, sonhava em ser uma fora da lei. Meu primeiro ídolo desobediente foi meu tio Luizinho.
Quando todos os homens pretos eram fanfarrões e brutos, ele era sensível e me mostrava poemas, inclusive o seu preferido tinha um verso do qual não me recordo muito bem agora mas faria todo sentido neste testemunho. Enquanto todos na família cresciam, casavam, tinham filhos e construíam uma casa no quintal dos pais, meu tio se aventurava a viver em outro, estado além de ostentar o trunfo de ter sido um dos sócios da primeira boate gay de Natal/RN.
Foram anos da minha vida admirando meu tio de longe e sendo uma menina acelerada demais: dizendo todos os “sim” possíveis, sem limites, sem regras. Sexo, drogas e baile funk.
Eram tantos ‘sim” que eu acabei me esquecendo de dizer “não”. Seja quem pedisse eu dava, não só minha larissinha encantada mas tudo o que eu tinha.

Lembro como se fosse hoje quando minha coluna praticamente entrou em greve, meu corpo estava totalmente paralisado. Papo reto: eu parecia um robô da terceira idade e, ainda assim, fui dançar durante algumas horas em um evento que nem tinha possibilidades de me remunerar, um daqueles momentos em que a causa fica em primeiro lugar.
Mas o auge da minha derrota foi quando, emocionada, uma menina me mostrou um desenho que ela tinha feito em minha homenagem. Em seguida, mais eufórica que antes, disse que na verdade o desenho era uma tatuagem que ela gostaria de fazer em mim no estilo hand poked, que é aquele jeito de tatuar sem máquina. Ou seja, um processo mais lento e dolorido. Mas não acabou aí! O drama vai aumentar quando eu te contar que a tatuadora era loira de olhos azuis. A vida debocha de você quando você não tem disposição de debochar dela.
Uma cena lamentável e desastrosa. Além da dor, o desenho parecia uma espécie de alienígena possuído por um demônio protagonista de filme de terror. Um dia difícil. E só ali eu me dei conta que até a desobediência é interseccional.
Um dia desses aprendi com Lúcia Xavier, assistente social e fundadora da ONG Criola, que as marcações de emancipação são diferentes: se mulheres brancas se emancipam quando queimam sutiãs, o jogo é diferente da ponte pra cá. Uma Mulher Preta alcança a liberdade toda vez que diz “não!”.
A minha rebeldia até ali era tão ingênua que só me transformava em um indivíduo dócil, uma fada acessível… e explorada.
Hoje, lendo sobre as ações e teses de desobediência epistemológica, onde artistas e pesquisadores negros e indígenas questionam as fontes de conhecimento, lembrei que está mais do que na hora de cobrir aquele desenho horrendo no meu corpo que representa uma preta domesticada que eu me recuso a ser.
O “não” passou a ser meu grande fetiche. Eu vou atrás dele como uma loba faminta, às vezes ele me escapa, mas eu persisto. Agradeço Grada Kilomba com suas ideias ingovernáveis e Conceição Evaristo com suas palavras insubimissas por me ajudarem a realizar meu sonho de menina: ser uma fora das leis. No caso, da branquitude.
No desenrolar do meu trabalho, que consiste em criar metodologias descoloniais para o estudo da dança e do corpo, passam por mim várias mulheres brancas que lutam desesperadamente para dizerem “sim”. Sim ao corpo, sim à cidade, sim ao trabalho, sim a todas as coisas que um dia elas julgavam pecaminosas demais, endemoniadas demais, pouco cultural demais pra elas, indignas.
Eu olho pra elas e sorrio com a calma de quem já sabe que está do lado oposto do quadro, que entende que não existe prazer maior para uma Mulher Preta que dizer “não”.
Lembrei do verso preferido do meu tio: “Não, não vou por aí. Vou por onde me guiam meus próprios passos”