Foto: Ana Rezende

As sensações de Valda | Coluna da Lola

“Então estamos te convidando para esse projeto. O valor é esse do e-mail, e a sua dupla pra foto seria a Valda Nogueira. Você já a conhece?” E eu não conhecia. Em pleno abril de 2018 e eu nunca tinha escutado esse nome. “Não, mas vou pesquisar já já.” 

Não pesquisei também. Fui conhecer o rosto de Valda na primeira reunião online do projeto Todo Dia Delas, do HuffPost Brasil, com a editora, Andréa Martinelli. Então a primeira sensação que a Valda causou em mim foi alívio. “Meu deus, é uma mina preta!” Conversamos sobre o projeto, ouvimos umas orientações de Andréa e seguimos. A primeira vez que vi Valda pessoalmente foi na estação Praça XV das barcas. A pauta era em Niterói, fomos nos conhecendo naquele caminho. E só hoje, sete de outubro de 2019, um ano e meio depois, eu entendo que recebi ali um puta presente do sagrado — e aqui você insere o que é sagrado pra você. 

Lembro que Kamilla Bussinger, a primeira das 80 histórias que iríamos contar, perguntou “vocês já se conhecem há quanto tempo?”. E eu respondi “acho que umas três horas”. Então, eu percebi que Valda causava conforto. Sabe gente que abraça com o olhar? Pois.

Os meses passaram, as pautas se desenrolaram. Com Renata, fotografamos aos pés do Cristo Redentor e foi a primeira vez que pedi “dá fazer uma foto assim?”. Não dava, ela sabia, mas tentou. Porque Valda era essa pessoa que tentava. Tentava abraçar todo mundo, entender as pessoas, escutar com atenção. 

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Olhando pra trás, percebo que na quarta pauta (ainda faltavam 76), parecíamos que estávamos naquele projeto há um tempão. Rolou um entrosamento, e entre uma viagem de trem até Santa Cruz ou Nova Iguaçu, ou três horas no trânsito até o KM 32, a gente foi sabendo um pouco da vida da outra. Aí eu descobri que Valda causa segurança. Era bom falar com ela, sem medo de retaliação ou explanação. O tipo de coisa que a gente sente com amigas bem próximas, desenvolvemos nessa relação de trabalho. 

E é por isso que eu reconheço nosso breve cruzamento de vidas como um presente do sagrado. 

É muito raro encontrar um ser humano sábio e justo, ainda mais nessa bagunça atual. É raro encontrar alguém tão firme, sem deixar de ser querida. Lembro a primeira vez que vi Valda puta com alguém que tinha sido escroto comigo. Foi num dos imbróglios com o patrocinador do projeto, na etapa de produção de uma das entrevistas. Eu nem imaginava como era Valda puta, então só soube rir. Mas tinha ali (mais) uma sensação, de confiança. Outra vez que a vi puta foi quando passei por um episódio de racismo minutos antes de chegar numa entrevista. Ela ferveu. “Vamos voltar lá e fazer um barraco, mona”, sugeriu. Não voltamos, mas senti segurança&confiança de novo.

Valda chorou com entrevistadas, gargalhou, bebeu cerveja, comeu, riu de novo. Nadou na cachoeira. Foi paciente e fez 100% delas se sentirem o que são: bonitas, lindas. Ela ouvia cada entrevista com atenção e extraía o melhor da pessoa, o que era nítido nas fotos. Quando uma entrevista era muito longa, na volta pra casa eu pedia ajuda: “O que você acha que não pode faltar no texto?”. Sugestões irretocáveis; me sentia amparada, ela tava sentindo o mesmo.

Deixou criança brincar de fazer foto, deixou senhora experimentar seus óculos legais, cantou funk no trem, bateu papo com camelô. Ela era tudo tanto. Valda foi atenta de um jeito inesquecível. É um espírito muito iluminado, muito sábio, muito justo. Várias vezes papear com ela me dava a sensação de paz, de conforto, abrigo. Ver o trabalho dela me dava sensação de poder. “Olha o que as pretas tão fazendo.”

A despedida definitiva de Valda me causou um vazio difícil de explicar. Chorei pouco, não sou de chorar muito. Olhei pra ela, cercada de sempre-vivas, e perguntei “o que tá acontecendo?”. Ainda não sei. Sei que não é justo, ela também não deve estar entendendo nada. Mas minha incredulidade só aumenta, e eu ainda tenho muito a aprender com Valda. Com a morte de Valda, quem perde é a fotografia, são as mulheres pretas, é o Brasil. Chora uma família, amigos, parceiros de trabalho. Perdemos Valda, e com isso um pouco da quase nula humanidade que nos resta. 

Se daqui pra frente, um dia, perguntarem se eu conheci Valda, diferentemente da primeira vez que o fizeram eu vou conseguir responder: “pra minha sorte, sim”. Ainda bem.

 

Foto: Ana Rezende

Coluna da Lola

Valda Nogueira. <3

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